O Grande Prémio da Crónica, instituído pela Associação Portuguesa de Escritores, foi atribuído, por unanimidade, a Ricardo Araújo Pereira, pelo livro Novas Crónicas da Boca do Inferno, uma coletânea das crónicas que semanalmente podemos ler na revista "Visão".
Deixamos-te uma das suas crónicas, em que Ricardo Araújo Pereira nos fala de SMS, gramática, abreviaturas… tudo envolvido numa boa dose de humor e provocação!
20 anos de SMS: k balanço?
O k de 'jokas' não revela uma preocupação com a economia dos carateres, mas sim com a introdução de um elemento de novidade
Agora que passam 20 anos sobre o envio da primeira mensagem SMS, talvez seja tempo de avaliar o contributo que esta forma de comunicação tem dado à língua portuguesa. O silêncio que a academia tem mantido sobre o tema foi finalmente interrompido pela obra tá td? jokas - elementos de semântica do SMS, do prof. José Júlio Moreira (edições Linha Recta). A ideia central do estudo é a seguinte: a mensagem SMS é uma simplificação que complexifica, no sentido em que é constituída por abreviaturas de tal forma intrincadas que acabam por requerer, elas mesmas, descodificação. No entanto, esse fenómeno não constitui obstáculo à compreensão do texto. Como diz Moreira, "o excesso de simplificação da escrita obscurece o conteúdo da mensagem que é, felizmente, em geral, nenhum". (p. 9)
Moreira dedica um capítulo à análise da expressão "tá td?", que dá o título ao livro (pp. 27 e seguintes). Regista duas contrações e uma omissão: a contração do verbo e do pronome, um reduzido à última sílaba e o outro expurgado de vogais; e a omissão do advérbio bem, que se subentende sem sequer ser assinalado por qualquer abreviatura. A este propósito, sente-se, Moreira experimenta um pequeno êxtase gramatical: "A falta do advérbio acrescenta um jogo de subentendidos entre emissor e receptor que tem interpretação múltipla. Que significa a desaparição do 'bem'? Que não há lugar para o bem naquela relação comunicativa? Ou, pelo contrário, que a presença do bem é tangível a ponto de ser desnecessário articulá-la verbalmente? Ou serão ambas verdadeiras, gerando uma tensão (inevitavelmente erótica) que a expressão 'jokas' parece confirmar?" (p. 41).
Sobre "jokas", Moreira debruça-se no capítulo seguinte. Em primeiro lugar, nota que, naquela abreviatura de "beijocas", a introdução do k não contribui para a poupança de letras que caracteriza a maior parte destes textos, daí retirando as devidas conclusões: "O k de 'jokas' não revela uma preocupação com a economia dos caracteres, mas sim com a introdução de um elemento de novidade: o que se diz é que estas 'jokas' são diferentes de eventuais 'jocas'. Em que consiste essa diferença? Modernidade e exotismo são valores que nos ocorrem imediatamente, e parece ser esse o objectivo da utilização de letras de outros alfabetos." (p. 66).
Deve fazer-se referência a um conceito interessante, avançado por Moreira: "A linguagem usada em sede de SMS revela, de um modo geral, aquilo a que poderíamos chamar 'literacia de chimpanzé', no sentido em que lança mão dos recursos de que um chimpanzé vagamente familiarizado com uma gramática também lançaria, como utilizar os sinais de pontuação para desenhar caras sorridentes ou tristonhas, por exemplo." (p. 81). Isto, sublinha Moreira, não passa de suposição, pelo menos até à altura em que o primeiro chimpanzé for vagamente familiarizado com uma gramática. Aguardemos.
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