quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

ABERTOS... PARA BALANÇO

        É comum, nesta altura do ano, encontrarmos as lojas fechadas para balanço: há que acertar as contas, saber que mercadoria foi vendida ou retida e decidir o que fazer daqui para a frente. Porém, os balanços não são exclusivos das empresas. Também nós os fazemos: quando pensamos no que conseguimos realizar; quando refletimos no que devíamos ter feito, mas deixámos na prateleira; quando projetamos o que fazer doravante; quando meditamos na forma como nos relacionamos com o mundo que nos rodeia; sempre que pensamos no impacto que os nossos atos tiveram entre os nossos familiares e amigos, ou, em contrapartida, quando pesamos a influência que os atos de outrem tiveram na nossa própria vida.
     Pensando em tudo isto, vale a pena ler um excerto de memórias de António Alçada Baptista, onde, invariavelmente, também se fala de livros. E ainda da memória, de profecias, de expectativas goradas, de mudanças sociais impulsionadas pelas escolas e universidades e até do papel das mulheres na sociedade ao longo de gerações!


Cada um de nós, no meio de tudo isto 

    Às vezes, acho que sou monótono: já comecei outro livro a falar na importância da memória. A certa altura da vida, a gente acaba por estar sempre a repetir-se. Tenho medo de ficar como aqueles que contam a mesma história duas e três vezes a seguir. É que nós acabamos por dar importância a duas ou três coisas e o resto tem muito menos interesse. (...)
      Pois a memória é uma das minhas obsessões. É através dela que sei quem sou e, não porque tenha uma ideia muito lisonjeira de mim próprio, mas pela consciência de que tenho um destino individual, não desejaria ser mais ninguém. (...) Não sei se sabem que as possibilidades matemáticas de existirem duas pessoas iguais estão avaliadas em uma entre 250 milhões, o que quer dizer que são praticamente nulas. Por isso me parece que a nossa individualidade é talvez o bem mais precioso que temos. 
        Uma das coisas que mais me impressionou na minha vida foi a falência das profecias. Nos anos 60 a futurologia estava na moda, sobretudo o que aconteceria à volta do ano 2000. O Mac-Luhan dizia que dentro de vinte anos (nos anos 80 portanto) já não haveria livros. Esfandiary achava que as pessoas morreriam apenas de acidentes, mas não definitivamente. Os mortos seriam congelados para serem tratados mais tarde.
     Gerard O'Neill anunciava que haveria mais humanos vivendo no espaço do que na Terra. Herman Kahn dizia que as pessoas viveriam mais, trabalhariam menos e se aposentariam mais cedo. (...) Não sei em que medida é que estes futurólogos, alguns reconhecidamente inteligentes, não estariam apanhados pelo espírito do tempo, uma espécie de vírus que apanha indiferentemente o inteligente e o estúpido. (...) 
       Eu acho que uma das grandes mudanças que aconteceram na minha vida foi essa: a de ver cada vez mais pessoas a participar na sociedade. Não quero chamar globalização nem massificação, mas a verdade é que, quando nasci, uma pequena minoria tomava conta do tempo e a maior parte das pessoas estavam de fora. (...) Quando vim para Lisboa, na minha juventude, a própria cultura estava demarcada: um pequeno mundo de duas mil pessoas, não mais, comprava os livros, ouvia os concertos, via as exposições. 
      O que aconteceu no meu tempo é que esse pequeno mundo explodiu. De uma geração para a outra, os filhos dos pobres tiraram os seus cursos e começaram a marinhar pela estrutura acima. No Brasil têm um nome que não é pejorativo, é um fato: são os emergentes. A maior parte das pessoas que estava fora da sociedade entrou nela e marca agora o seu ritmo, os gostos, as aspirações. (...) 
     Como já tenho dito, além deste alargamento da sociedade, outra coisa que aconteceu de importante em todo este tempo, e que, de certo modo também faz parte daquele fenómeno, foi a entrada da mulher na história. Quando nasci, a mulher estava fora da história. Havia duas ou três mulheres que nos deslumbravam talvez por isso, por assomarem à porta da história. Era, por exemplo, a Irene Lisboa e a Maria Lamas [escritoras portuguesas]. Esta conheci muito bem: era assim uma espécie de chama para quem o mundo punha grandes exigências de luta. Os jornais diziam às vezes "Faleceu A., a primeira mulher que se formou em Medicina em Portugal". "Faleceu B., a primeira mulher que se formou em Direito." A mulher aparecia nos jornais sempre que fazia coisas que os homens estavam já fartos de fazer. Quando uma senhora surgia a conduzir um automóvel, os passantes diziam: "Olha uma mulher a guiar." Eu não tenho dúvidas: quando nasci, as minhas avós, a minha mãe, as minhas tias, todas as mulheres, não tinham ainda entrado na história. 

António Alçada Baptista, A Cor dos Dias — Memórias e Peregrinações
Presença, 2003 (texto com supressões)

Como o autor também refere…

"Vamos ficar por aqui, a fazer aquilo que podemos e sabemos, certos de que fazemos muito pouco em relação aos sonhos que moram no nosso destino e que talvez façamos muito se tivermos em conta aquilo de que somos feitos."

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