“I AM UTOPIAN” / “EU
SOU UTÓPICA”
O
currículo de Fátima Vieira é
extensíssimo: é Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, onde leciona desde 1986; é especialista na área dos
Estudos sobre a Utopia; é Presidente da associação Utopian Studies Society / Europe desde 2006; é coordenadora do Polo
do Porto do CETAPS – Centre for English,
Translation and Anglo-Portuguese Studies, onde dirige uma linha de
investigação sobre o utopismo britânico e norte-americano, e colaboradora do
ILC – Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, onde tem coordenado
projetos de investigação sobre o utopismo português; é, atualmente,
coordenadora do projeto de investigação financiado pela FCT "Utopia,
Alimentação e Futuro: O Modo de Pensar Utópico e a Construção das Sociedades
Inclusivas - Um Contributo das Humanidades"; é ainda diretora da coleção
“Nova Biblioteca das Utopias”, publicada pela editora Afrontamento, bem como de
dois periódicos eletrónicos: E-topia
- revista eletrónica de Estudos sobre a Utopia e Spaces of Utopia (publicados pela Biblioteca Digital da FLUP); é
Book Review Editor do periódico norte-americano Utopian Studies e faz parte do Conselho Editorial de várias
revistas internacionais; é coordenadora do Programa de Pós-Doutoramento e
Internacionalização ARUS – Advanced
Research in Utopian Studies, bem como dos Seminários Multidisciplinares
ARUS; integra, desde a sua fundação, a equipa de investigadores que se tem
vindo a dedicar à tradução e estudo da obra de Shakespeare…
Não
obstante a extensão do seu currículo, este bem poderia resumir-se a uma frase
curta: “Eu sou utópica” / “I am utopian”!
Tudo
começou quando, há trinta anos, Fátima se encontrou com o livro da sua vida, a Utopia, obra escrita há meio milénio
por Thomas More.
PARA QUE SERVE A
LITERATURA?
Um só
livro pode alterar o curso de uma vida, como sucedeu com Fátima Vieira. Porém,
como esta professora doutora,
especialista em literatura inglesa lembrou aos nossos alunos de 8.º ano que
tiveram o privilégio de a escutar, a literatura, a grande literatura, serve
muitos fins:
▪ A literatura
põe-nos em contacto com mundos que de outro modo nunca conheceríamos. No seu caso,
o primeiro contacto que teve com a China aconteceu quando leu as obras de Pearl
S. Buck, Prémio Nobel em 1938, que, nos seus livros, descreveu
pormenorizadamente a cultura asiática, para além de ter defendido os direitos
das mulheres e das minorias. Pelo contrário, quando trabalhou com o
investigador albanês Eris Rusi, muitas vezes era-lhe difícil estabelecer
diálogo com o colega, uma vez que desconhecia o seu país de origem, por nunca
ter tido a oportunidade de ler livros oriundos daquela nacionalidade. Como Eris
lhe explicou, havia uma razão para ela desconhecer a sua cultura: dado que a
Albânia estivera durante muitos anos sob um regime ditatorial, a literatura autóctone
fora completamente asfixiada; por outro lado, os cinco tradutores oficiais do
regime escolhiam os livros estrangeiros que, do ponto de vista da ditadura,
poderiam ser lidos pelos albaneses e mutilavam-nos, suprimindo as partes
passíveis de “acordar” a população. Por esta razão, quando chegavam (se é que
chegavam!) aos leitores, os livros tinham uma dimensão substancialmente menor
que os originais.
▪ A
literatura oferece-nos lições de vida e demonstra-nos que temos de ser mais
solidários. Assim acontecia, por exemplo, com a literatura vitoriana,
representada pela obra de Charles Dickens, autor de As Aventuras de Oliver Twist
ou David Copperfield, obras que eram
lidas ao serão na casa dos privilegiados e lhes apresentavam uma perspetiva
diferente sobre a difícil vida do operariado.
▪
Sendo um simulador muito económico da realidade - uma obra apenas pode reportar-se
à vida de várias gerações, mas nós, em contrapartida, jamais poderíamos viver
numa só vida todas as experiências que um livro apenas é capaz de relatar -, a
literatura confronta-nos com dilemas éticos (“O que é que eu faria se…?”), para
além de ser uma excelente companhia.
▪ A
literatura é um meio de viagem – ao passado, ao presente e ao futuro; a meios
sociais distintos do nosso; a países e sociedades desconhecidas,
transformando-nos, por isso, em cidadãos do mundo.
▪ A
literatura é um instrumento que nos prepara para a vida, porquanto desperta em
nós sentimentos de empatia, compreensão, repulsa, indignação, revolta,
sublevação… bem como nos predispõe a uma maior compreensão de outras culturas,
à tolerância e à aceitação de outros pontos de vista. Ajuda-nos, igualmente, a
aceitar os nossos fracassos, porque nos coloca frente ao fracasso dos outros,
tal como nos incita a enfrentarmos as consequências das nossas ações, a
identificar as questões fundamentais da existência humana e a compreender a
nossa própria vida.
▪ A
literatura exige que nós – os leitores – usemos a nossa experiência e
sensibilidade para completar a narrativa. É por isso que cada leitor interpreta
a obra à sua maneira. Vejamos, a título de exemplo, Os Irmãos Karamásov, de Fiódor
Dostoiévski. Será que se trata de um livro sobre as relações familiares e como
elas se desfazem? Ou será sobre a nossa relação com Deus? Será sobre redenção? Sacrifício?
Traição? Sobre as tensões entre pais e filhos? Será sobre a rejeição e a
solidão? Obviamente, é sobre todas estas coisas e muito mais!
▪ Como
também refere Richard Zimler, quem lê mais é mais participativo, mais
empreendedor e um ser humano mais completo. Como afirma, “(…) as histórias
escritas por outras pessoas – por pessoas que não conhecemos – podem ter um
efeito direto no modo como nos vemos a nós próprios e como interagimos com os
outros. Ajudam-nos a tornarmo-nos seres humanos completos por nos permitirem
contar a nossa história com justeza e verdade, quer de modo consciente quer
abaixo da superfície da nossa consciência”.
THOMAS MORE, UTOPIA,
1516
A UTOPIA: UM “PAÍS DA
COCANHA”
OU UMA NOVA FORMA DE
PENSAMENTO?
Na
verdade, no Livro II da Utopia, Thomas
More não pretendia que aspirássemos a viver no “País da Cocanha”, onde gansos
assados no espeto e cotovias gráceis, bem guisadinhas e cobertas com montes de
canela em pó voam diretamente para a boca dos homens, sem necessidade de suar
para pagar a conta. A Utopia é outra
coisa!
Antes
de mais, a utopia radica no pressuposto de que o ser humano é capaz de mudar e
tem mesmo a responsabilidade de o fazer. A utopia, como afirma Eduardo Galeano,
é algo que colocamos no nosso horizonte e nos dá forças para caminharmos e
avançarmos cada vez mais. A utopia não é o
caminho, mas os diferentes possíveis
caminhos. A utopia radica em perguntas inaugurais: “E se…?” e “Onde quero
chegar?”, ou melhor, “Onde queremos chegar?”
Com a
Utopia, Thomas More criou uma visão
particular do mundo e uma nova forma de pensamento: pensamento inclusivo,
pensamento crítico, pensamento holístico e pensamento criativo. No fundo,
trata-se de libertarmos a imaginação e de sermos cidadãos ambiciosos nos nossos
objetivos e, consequentemente, termos a possibilidade de chegar mais longe;
trata-se de termos a capacidade de descentramento e de trabalhar em cooperação,
com ética e solidariedade; trata-se de sermos questionadores, indagantes,
responsáveis e conscientes das nossas ações; trata-se, ainda de produzirmos
conhecimento novo de que toda a sociedade poderá usufruir - na Utopia, não se idealiza nem a Natureza
nem o ser humano, mas a organização social, preocupando-se o utopista em
resolver os problemas sociais (criminalidade, pobreza, vício…) através de um
conjunto de estratégias coerentes. No fundo, como refere Gonçalo M. Tavares em
Breves Notas sobre Ciência, trata-se de “Observar a realidade pelo canto do
olho, isto é: pensar ligeiramente ao lado”.
Não
se pense ainda que na Utopia se
pressupõe a mudança radical e instantânea da sociedade. Pelo contrário, a
utopia imagina o novo “a partir de novas combinações e escalas daquilo que
existe, a maioria das vezes pequenos detalhes obscuros daquilo que existe”,
como esclarece Boaventura de Sousa Santos em A estratégia utópica (p. 480)
“THE WORLD GOES TO WHERE WE TAKE IT”
“O MUNDO VAI PARA ONDE
NÓS O LEVARMOS”
Fátima
Vieira deixou que a filosofia de um livro norteasse toda a sua ação ao longo
dos últimos 30 anos e, por isso, envolveu-se em múltiplos projetos com jovens
portugueses e estrangeiros (ver em Utopia500.net). Neste momento, está ligada a
projetos muito interessantes, nos quais também tu podes participar. Destacamos
alguns:
-
“Utopian Challenge”, que consiste em te filmares a dizer “Eu sou utópica” / “Eu
sou utópico”, visando a produção de um mega vídeo mundial, que mostre que nós,
os utópicos somos muitos;
-
“PanUtopia”, projeto que visa o combate ao desperdício alimentar;
- “Os
sons da Utopia”, cujo lema é “vale a pena tocar em músicas e trazê-las para o
presente” e que tem por objetivo fazer o
update das músicas do Renascimento;
-
“Great Utopians” /”Grandes Mentes Humanas”, através do qual se pretende
construir um mapa alternativo da cidade, valorizando o património humano.
DESAFIO: COMEÇA A
ESCREVER O LIVRO III DA UTOPIA
Um
desafio demasiado ambicioso? O.K. talvez seja mesmo demasiado ambicioso. Para
já!
No
entanto, há dois desafios um bocadinho menos ambiciosos que Fátima Vieira nos
deixou :
▪ LIBERTA A TUA IMAGINAÇÃO. Como dizia
Albert Einstein, “A imaginação é mais importante do que o
conhecimento. Pois o conhecimento é limitado, ao passo que a imaginação
abarca o mundo inteiro, estimulando o progresso, gerando evolução. É, na
verdade, um fator importante a ter em conta na investigação científica”.
▪ E que
tal começar a LER E a COLOCAR QUESTÕES? As perguntas que
fazemos sobre as outras sociedades levam-nos a colocar questões sobre a nossa
sociedade. E a querer mudá-la!
Lembra-te: até as plantas
hermafroditas [com a possível exceção da ervilheira] necessitam de material
genético novo para se reproduzirem. Que tu sejas o material genético novo.
Que a mudança comece em ti!
Sou uma grande admiradora da Fátima Vieira ! Fico muito feliz que tenham tido o privilégio de a conhecer e de a ouvirem! Todos sairam certamente mais ricos, professores e alunos!
ResponderEliminarFoi, realmente, um privilégio conhecer Fátima Vieira! As suas palavras deixaram-nos cheios de luz!
ResponderEliminarFátima Vieira Confesso que até fiquei corada com este artigo! As professoras da escola EB 2,3 são umas queridas e exageram naturalmente em relação à minha apresentação, mas é muito bom saber que consegui fazer passar a mensagem. Uma ideia notável, a de nos convidarem para falarmos dos livros da nossa vida. É que há mesmo livros que mudam a forma como pensamos o mundo. E se conseguirmos passar a mensagem aos jovens, já estamos a meio caminho de o mudarmos de facto!
ResponderEliminarFátima Vieira, Facebook
De facto, não exageramos absolutamente nada: o encontro com Fátima Vieira foi verdadeiramente inspirador e marcante! Mais uma vez, muito obrigada por ter vindo à nossa escola iluminar-nos!
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