quinta-feira, 23 de maio de 2013

LEMBRANDO AS CEREJAS...


No mês em que se comem as cerejas ao borralho, não poderíamos esquecer estes frutos rubramente deliciosos.
Lembramo-las com palavras e imagens. Saboreia-as!



Não quero escrever muito. Não é preciso. Já disse algumas vezes que estou deixando de falar. E também de ouvir. E também de pensar. E de vez em quando uso óculos totalmente escuros para não ver nada. Mas no pouco que quero escrever […], lembro das cerejas de Portugal, aquelas que as mulheres nas aldeias colhem na hora, lavam e entregam. Já comprei cerejas assim muitas vezes em vários locais de Portugal, quase sempre nas montanhas. Tenho na boca o gosto dessas cerejas, o vermelho das amoras, esse gosto que permanece, que parece ficar para sempre. Sinto assim especialmente agora, quando sinto que todas as coisas passaram sem que eu percebesse. Sinto agora esse gosto de amora, das avelãs da minha tia Lourdes, poeta de versos sacros, todos feitos para Deus. Sempre que a vejo, ainda hoje, ela me dá avelãs. Guardo o gosto das avelãs, o gosto das amoras, o gosto das cerejas, aquelas mulheres das montanhas com um lenço na cabeça, que vendem cerejas colhidas na hora e cantam canções das mais lindas que ouvi até hoje, porque são canções da terra, com gosto de chuva, com gosto do amor, um amor de vinho e azeite. Depois as ruas onde andou Fernando pessoa, a mesa em que lia o jornal, o balcão onde tomava o seu café. Não quero escrever muito, apenas o suficiente para lembrar. As coisas passaram para sempre. Estão distantes, numa memória que se apaga. Eu estou ausente de mim.

Álvaro Alves Faria, jornalista, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro

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