quarta-feira, 25 de março de 2015

OS LIVROS DA MINHA VIDA: A CIDADE E AS SERRAS

A Cidade e as Serras de Eça de Queirós é, desta vez, o livro escolhido pelo Professor Luís Cravo para nos fazer viajar pelo  seu mundo de leituras.
Lê, inspira-te e atreve-te a ler mais este livro magnífico, que temos ao teu dispor na nossa biblioteca!

A CIDADE E AS SERRAS

A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano

     No meio de um verdadeiro turbilhão civilizacional que assola o mundo desde os finais dos século passado e se acentuou neste início de século, muito particularmente no seio de uma Europa verdadeiramente consumida por uma crise de identidade grave, costumo tentar ultrapassar as minhas cogitações sobre o quotidiano dedicando-me a práticas de ausência mental premeditada onde algumas das minhas veias literárias sobressaem sobremaneira. De momento, dedico-me a Marguerite Yourcenar e às Memórias de Adriano, tendo deixado em stand by um belo ensaio tragicómico de Maria Filomena Mónica sobre o estado da educação nas escolas portuguesas. A minha filiação literária queirosiana leva-me, no entanto, sempre ao mesmo lugar: EÇA!! O meu Eça, o meu muso inspirador, um dos raros visionários que este país conheceu, um verdadeiro guru da literatura realista mundial do séc. XIX. Para além do meu muito amado Os Maias (que leio ano sim, ano não), decidi comprar, há quase um ano, num acesso de fúria consumista literária, o clássico A Cidade e as Serras. O meu irmão herdou (na verdade, usurpou…), a edição antiquíssima que o meu pai mantinha desde os tempos do Liceu de Aveiro. Claro que, como irmão mais novo, calei e não reclamei, por achar que estava no seu pleno direito.
     A Cidade e as Serras explora o Portugal de finais do séc. XIX e, ao mesmo tempo, apresenta-nos um retrato fidelíssimo da Paris dessa época, cidade universal, cidade cosmópolis, plena de civilização, modernismo, dinâmica e com gente chic a valer! É nesta Paris babilónica que vamos encontrar a nossa personagem principal, Jacinto ou, nas palavras da sua mãe, o Cintinho.
     Jacinto é o verdadeiro Homo Urbanus (e sei que estou, provavelmente, a violentar o nosso latim, mas esta é uma definição que acho perfeita, mesmo podendo escandalizar os latinistas), o clímax da modernidade, a borboleta social da época. Hoje, alguém o apelidaria com aquela designação ridícula de metrossexual mas, à época, tais devaneios da massificação propagandística não existiam! Este nosso Jacinto é adorado pelos seus amigos, pelos seus criados, pela fina flor da sociedade parisiense de finais do séc. XIX e vive envolto num casulo de luxo, intelecto e prazer constantes. Obcecado com o conhecimento e o progresso, Jacinto coleciona as últimas novidades da tecnologia, tornado a sua casa um dos locais mais concorridos da elite parisiense, uma verdadeiro mausoléu das últimas novidades das artes plásticas, da literatura mas, sobretudo, da tecnologia. À parte tudo isto, a nossa personagem fulcral não é feliz e, à medida que vai adquirindo todas as novidades da época, apercebe-se do reduto de infelicidade em que, de forma escamoteada, vive. A única pessoa que se vai apercebendo desta situação é o melhor e mais antigo amigo de Cintinho, Zé Fernandes, esse outro elemento essencial para o desenrolar de A Cidade e as Serras. Zé Fernandes sabe que, na verdade, Jacinto “vomita” Civilização! Jacinto ganhou alergia a Paris, às suas festas, ao excesso de tecnologia que invadiu a sua casa. Em suma, tornara-se vítima das suas antigas paixões. A intelectualidade, o saber, o dinheiro, o luxo, a informação, as festas e, sobretudo, a tecnologia (episódio quase surreal, de fazer cair lágrimas de tanto rir, é o do jantar oferecido por Jacinto ao Grão duque Casimiro, e do peixe que constituía uma iguaria e que, afinal…bem, aconselho a lerem vocês mesmos). Ele não o crê, verdadeiramente. Não antevê a sua vida fora da cidade que, erroneamente, insiste que ama quando, até no momento em que sai à rua, fica invariavelmente achacado, irritado, triste, taciturno e com vontade de se encerrar no seu quarto. A frase predileta deste homem torna-se um hábito: “É uma seca…” (estamos no séc. XIX!!!) .
     Ora, num súbito volteface deste livro, Jacinto vê-se obrigado, por motivos de força maior, a viajar para Portugal, mais propriamente para a recôndita aldeia de Tormes, terra de origem de seus pais e avós. Para ele, esta tarefa afigurava-se árdua e a soar a tragédia. Afastar-se de Paris e ir para aquilo que, à época, o sul da Europa ainda significava, equivaleria a uma sentença de prisão perpétua ou perpétua penitência. Não querendo revelar muito mais sobre esta jóia da literatura portuguesa, Jacinto acaba por encontrar, num mundo genuinamente rural, o verdadeiro “novo mundo”, e são muitas as peripécias que se irão passar até o nosso “parisiense” deixar de ter vontade de voltar a Paris e acabar por assentar arraiais no seu solar de Tormes, onde se tornará naquilo que muitos de nós, atualmente, gostaríamos verdadeiramente de ser: humanos completamente felizes.
     Esta obra de Eça de Queiroz é incrivelmente atual e coloca-nos, de forma exímia, em choque com a condição de seres massificados, urbanizados e imbuídos de novidade e encanto tecnológico, seduzidos por não pensarmos, mas por permitirmos que pensem por nós. Hoje, o “nosso Jacinto” é o homem que vive obcecado pelas novas tecnologias e pelas redes sociais e que não pode passar (nem imagina) a sua vida sem nenhuma dessas coisas, nem sem o carro, nem sem as multidões, nem sem os shoppings...é este homem que Eça denuncia na sua A Cidade e as Serras e, se hoje, este génio da literatura pudesse ter uma brevíssima passagem pelo nosso quotidiano, iria pensar: “como tudo e nada mudou!...”.  
     Deixo-vos com uma passagem deste livro que pode constituir um ponto de partida para uma reflexão mais aprofundada: “Mas o que a cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância”.

                Professor Luís Miguel Cravo

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