sábado, 9 de janeiro de 2016

VALE A PENA PENSAR NISTO: ESCATOLOGIA DAS PALAVRAS

ESCATOLOGIA* DAS PALAVRAS


      «As palavras têm um fim como nós outros o havemos de ter, quando a chama de esta vida se apagar. (…)
       As palavras têm vida. Muitas nasceram antes de nós e hão de ultrapassar-nos no tempo. Outras vieram ao mundo connosco, andámos com elas ao colo com carinho, levámo-las pela mão para não tropeçar nos escolhos do dia a dia e depois, quando as sentimos suficientemente fortes para enfrentar sozinhas os perigos de este mundo em que vivemos em comum, dissemos-lhes adeus, ou talvez, até logo. Mas também há palavras que são palavras espúrias, sem pai que se confesse ou mãe que as acarinhe. São filhas do acaso. Muitas nasceram com mazelas e defeitos que o tempo transformou em vícios de que ninguém cuida ou de que ninguém quer saber ou sequer ouvir falar. São as palavras que só vêm ter connosco em momentos de desespero ou de decadência, as palavras noturnas que não gostam de ver a luz do dia. E quantas palavras destas vagueiam agora pelas ruas, penetram diariamente nos lugares públicos, outrora respeitáveis e hieráticos, e entram, sem convite nem licença, através dos meios de comunicação social, nas nossas casas particulares, até aí recatadas e honestas!
      Mas há também palavras que, tal como os homens, vestem as cores do camaleão e vão mudando de sentido, para não perder o sentido da mudança. São as palavras sem caráter, que servem de camisa aos homens que também o não têm. São ainda as palavras da moda, que convém dizer para não as ouvir, na volta, com um significado diferente. São as palavras medíocres, feitas à maneira do tempo que ora corre e de acordo com a estação em que se vive.
      Há ainda as palavras indiferentes, de que se servem os que são incapazes, por medo, por cobardia ou mais prosaicamente por estupidez de tomar partido nesta vida, mesmo em relação às palavras. Com exagerado e pueril cuidado escolhem as palavras uma a uma para com elas construir frases insípidas, com o diplomático receio de que algum dos ouvintes possa ser alérgico. E se as palavras espúrias, as palavras noturnas, bem como as palavras medíocres , da moda e do camaleão estão destinadas ao inferno, estas, seguindo o exemplo de Dante, nem isso merecem, quedando-se na antecâmara do mesmo inferno, aí ficando a aguardar o último dia que há de vir, o dia do juízo que será o derradeiro e o capítulo final a fechar o livro de esta vida. (…)
      E, finalmente, no paraíso das palavras, na mais completa harmonia, vivem para sempre as palavras que os clássicos usaram nesta vida sem temor, as palavras que deram nova forma à língua e vida ao pensamento, as palavras criadoras que não têm tempo nem idade. Algumas andaram meio esquecidas neste mundo, recatadas e humildes, temerosas de se confundir com as palavras noturnas; outras tiveram melhor sorte, e viram-se respeitadas por todos e acatadas por muitos. Hoje, porém, são quase todas elas perseguidas com fúria desmedida pelos que destroem a língua que não amam nem conhecem.
       Dêmos vida às palavras e tratemo-las como se vida tivessem. Respeitemo-las. E saibamos escolher entre as palavras que dignificam os que as usam e as palavras que amesquinham e apoucam os que as vomitam. E, sobretudo, não tenhamos vergonha de ainda em Portugal falarmos Português.»

Crónica de António Leite da Costa in As Artes entre as Letras,
n.ª 108 de setembro de 2013
(Texto com supressões e adaptação ao AO)
*“Escatologia” – teoria acerca das coisas que hão de suceder depois do fim do mundo.

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