Era suposto termos a “Semana da Leitura”. Sim, “era suposto”. Todavia,
a adesão da comunidade tem sido tão expressiva que já vamos na “Segunda Semana
da Leitura”! Para além das iniciativas a decorrer na biblioteca, temos tido o
testemunho de leitores, ex-alunos, professores, pais e elementos da comunidade,
que vieram falar dos livros que os marcaram e da importância da leitura nas
suas vidas.
Hoje tivemos o privilégio de receber
dois convidados que aceitaram dar-nos o seu testemunho e que são de áreas
profissionais e de formação muito diferentes, o que mostra que a leitura é
transversal e não específica de determinadas profissões:
▪ A Dra. Isabel Santos tem formação
em Relações Internacionais e Sociologia e é atualmente deputada na Assembleia
da República, eleita pelo círculo do Porto. É Presidente da Comissão de
Democracia, Direitos Humanos e Questões Humanitárias da Assembleia Parlamentar
da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). Já foi
Governadora Civil do Porto e exerceu cargos em autarquias.
▪ O Dr. Pedro Sarmento, para além de
ter sido um ativo desportista, tem formação em Educação Física e Desporto e é
professor na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Exerceu diferentes
cargos, incluindo no gabinete de desporto da autarquia, e é atualmente o
Presidente do Académico Futebol Clube, aqui perto na rua Costa Cabral.
NA ESCOLA: APRENDER A APRENDER
ISABEL
SANTOS começou cedo a ler coisas sérias. Foi criança única até aos 9 anos e
habituou-se a estar sozinha. Sozinha, não: tinha a companhia dos livros e,
durante os três meses de férias, lia uns livros atrás dos outros. O hábito da
leitura foi-lhe incutido pelos pais e pelos adultos que via a ler. As novelas
da sua infância (como «Gabriela, Cravo e Canela» - baseada num dos romances
mais célebres de Jorge Amado) também tiveram um papel importante no seu
percurso de leitura: foi a propósito da Malvina, que lia O crime do Padre Amaro, romance “escandaloso e proibido” às escondidas e era perseguida por isso,
que Isabel Santos começou também a ler a obra de Eça. Claro que, quando leu
este romance pela primeira vez, não teve dele um entendimento cabal: faltava-lhe,
então, o vocabulário e a vivência para que tal fosse possível.
Isabel
Santos tem desempenhado funções muito díspares e tudo o que sabe deve-o aos
livros a que recorreu para se atualizar nas diversas fases da sua vida. É
precisamente a sua vasta experiência ancorada nos livros lidos que lhe dá a
autoridade para afirmar: “A escola, mais do que os conteúdos, deve levar os jovens a aprenderem a
aprender sozinhos. Isso foi o mais importante que a escola me deu!”
Foi
também a leitura a grande catapulta do bisavô de Isabel Santos: embora não
tivesse mais do que a 4.ª classe (atual 4.º ano), nem nunca tivesse viajado
para o estrangeiro, fez um percurso que lhe permitiu ser guarda-livros
(equivalente ao atual contabilista), fez a revisão de textos de Aquilino
Ribeiro, foi revisor do jornal “Primeiro de Janeiro” e chegou mesmo a escrever
textos para esse jornal, porque tinha uma visão muito alargada do mundo, que
adquiriu graças aos muitos livros que lia.
HERÓIS QUE SE CONTROEM PELA LEITURA
OU ACERCA DO PODER
LIBERTADOR DOS LIVROS
“Somos
fruto das nossas viagens físicas e daquelas que os livros nos proporcionam”,
crê Isabel Santos. Acredita, igualmente, que a sua capacidade de intervenção
social se deve ao que a vida lhe tem proporcionado e, sobretudo, ao que foi
aprendendo nos livros, porque a leitura impele-nos a colocarmo-nos no lugar dos
outros, a sentir e a reagir, além de estimular a nossa imaginação. Este
processo mexe com a nossa capacidade criativa e torna-nos mais tolerantes e
mais capazes de intervir, social e civicamente.
Ontem,
a propósito do 1.º de maio e da sua vinda à nossa escola, Isabel perguntou-se
qual o livro que mais a marcou. E regressou à primeira vez (e também à última)
em que leu A Mãe de Máximo Gorki, um
livro que é uma evidência do poder libertador dos livros.
Trata-se,
segundo Isabel, de um livro notável, cuja protagonista é uma heroína que se
constrói pela leitura, numa época em que o povo russo vivia tempos marcados
pela rudeza e pela crueldade, mas que, graças aos escritos revolucionários que
o filho lhe trazia para casa, se transformou numa líder.
Para
terminar a sua intervenção inicial, Isabel Santos deixou um conselho: “Leiam! Leiam muito! Porque esse é o melhor instrumento de que dispõem
para se construírem como indivíduos capazes e interventivos. Ao longo da vida
podem vir a encontrar muitas barreiras que vos travem, mas, se lerem, serão
sempre mais livres do que aqueles que não o fazem e irão sempre mais longe!”
“O FUNDAMENTAL DE UM BOM LIVRO É
FAZER-NOS SONHAR”
Para
iniciar a sua intervenção, PEDRO SARMENTO confessou que o que mais gostaria era
algo que não iria conseguir: entrar dentro de cada aluno e perceber o que
gostaria que lhe dissesse. Falou, depois, da sua infância: não fora um bom
aluno e, para desgosto
de sua mãe, não levava boas notas para casa. Do que gostava, realmente, era da
atividade desportiva: jogar futebol, hóquei, natação…
Foi
no mundo do desporto e através das conversas com os amigos que começou a
perceber o mundo, mas, com o passar dos anos, percebeu que podia ir mais longe,
que podia sonhar. E sonhar, para Pedro Sarmento é fundamental: «com o sonho
construímos o que mais gostamos; com o sonho voamos para onde queremos estar» -
assegura-nos.
É
essa a grande a grande vantagem dos livros: “O fundamental de um bom livro é
fazer-nos sonhar.”
Este
professor universitário e diretor desportivo, que deposita uma enorme confiança
nas gerações mais jovens, considera-se um leitor por fases: agora lê toda a
obra de um escritor; em seguida, escolhe outro e devora todos os seus livros.
Aconteceu assim com a obra de Miguel Torga, que teve a oportunidade de conhecer
nas férias de verão, na praia que ambos frequentavam. Pedro Sarmento adivinhava
o fim próximo do respeitável e austero ancião de chapéu preto, pelo que quis
retê-lo, lendo os seus textos e descortinando a conceção de vida que alicerçava
toda a sua obra.
No
entanto, o poeta transmontano é apenas um dos muitos autores que Pedro Sarmento
aprecia. Por isso, apresentou-nos uma mochila cheiinha de livros dos autores
que o têm feito voar e entre os quais se contam:
▪ Haruki
Murakami – Sempre que sai algum livro deste autor, lá está Pedro na fila para
ser um dos primeiros a ficar com a obra. Pudera! Murakami fá-lo abstrair-se dos
dos problemas com que tem de defrontar-se no clube e na faculdade onde trabalha.
Como refere, arrebatado, os momentos em que lê um livro do autor japonês “São
horas de deleite total. Posso estar com problemas na faculdade, no clube ou até
mesmo em casa, que, durante umas horas, entro no livro e esqueço tudo”
▪
José Saramago - Não é um autor fácil de ler e não leu toda a sua obra, mas
considera que alguns dos livros do Prémio Nobel português são absolutamente
fantásticos. O Memorial do Convento
foi o primeiro romance que leu, depois de frequentar a tropa em Mafra, e o Ensaio sobre a Cegueira, que foi
adaptado ao cinema pelo realizador brasileiro Fernando Meirelles, é outro bom
exemplo. Na verdade, como habitualmente, o livro é, na sua opinião, muito
melhor que o filme, pois «nos filmes, ficamos agarrados às imagens, mas com os
livros ficamos agarrados às palavras e às ideias e a nossa imaginação não
para».
▪
David Lodge – Quando lê este autor -que aborda um universo que lhe diz
respeito, o da academia, dos círculos universitários, dos congressos - Pedro
ri-se das situações fantásticas espraiadas nas sua obras.
▪
José Eduardo Agualusa – Para Pedro, o expoente máximo da escrita em português,
que tem a capacidade de o deixar preso a uma primeira frase de um romance, pela
sonoridade das palavras e pelo ritmo das frases, e é o autor de um dos livros
mais interessantes que já leu - As
Mulheres do meu Pai, livro que o fez recordar o seu próprio pai.
▪
Carlos Ruiz Zafón – Outro autor, catalão, que Pedro aprecia e que escreveu, por
exemplo A sombra do vento, uma
alegoria da espécie de amizade que alguns leitores mantêm com certos livros e
que prende o leitor desde o primeiro instante.
Depois
de falar de alguns dos escritores que o fazem voar, Pedro Sarmento exortou os
alunos a aderirem à leitura. Claro que ler não é a única coisa importante a
fazer: Pedro até está à vontade para dizer que há alturas em que tem quatro ou
cinco livros na mesinha de cabeceira e que, noutros momentos, não lê. Porém, é
fundamental alimentar o sonho lendo livros, assim como é importante dialogar
com os amigos, ir ao cinema, praticar desporto, ouvir música… pois, para sermos
felizes não chega sermos pragmáticos: é necessário calibrar a realidade com o
sonho.
«A LEITURA E A NOSSA MUNDIVIDÊNCIA
FAZEM-NOS MUDAR AS LENTES DA MENTE!»
Depois
de tão interessantes testemunhos, houve ainda lugar a questões, momento em que
ficamos, ainda, a saber que:
▪ Quando
Pedro Sarmento não gosta de um livro, simplesmente não o lê. Antes ainda se “castigava”
lendo o livro até ao fim, mas agora não o faz. Deixa-o de lado e já lhe
aconteceu pegar nesse mesmo livro noutro momento e até gostar.
▪
Houve livros que deixaram estes dois leitores experientes tristes. Por exemplo,
o último livro que Isabel Santos leu, Deixar
Alepo de Manuela Nisa, deixou-a tristíssima, pois conta a história de uma
família obrigada a abandonar a sua terra e a viver toda a espécie de situações
de aviltamento da condição humana.
▪ O
Livro que mais marcou Pedro Sarmento é… o próximo. Este (também) autor de sete
livros vive na expectativa de que o próximo livro que lerá será o livro da sua
vida!
Em suma, mesmo que, por vezes, sejas obrigado
a ler um livro que não te agrada tanto, não desistas de encontrar o livro da
tua vida. Na vida há duas vertentes: o mundo real, quotidiano, que é,
obviamente, importante. Mas depois há outra vertente que é a do sonho, que vem
com os livros, com a música, com o cinema, com a arte. Com o sonho podemos
viver o que ambicionamos e que o quotidiano não nos permite, como nos
transmitiram estes brilhantes oradores, cujas palavras sábias cativaram a
audiência.
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