domingo, 1 de maio de 2016

SEMANA DA LEITURA: TESTEMUNHO DE LEITURA DE UMA UTÓPICA



“I AM UTOPIAN” / “EU SOU UTÓPICA”

O currículo de Fátima Vieira é extensíssimo: é Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde leciona desde 1986; é especialista na área dos Estudos sobre a Utopia; é Presidente da associação Utopian Studies Society / Europe desde 2006; é coordenadora do Polo do Porto do CETAPS – Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies, onde dirige uma linha de investigação sobre o utopismo britânico e norte-americano, e colaboradora do ILC – Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, onde tem coordenado projetos de investigação sobre o utopismo português; é, atualmente, coordenadora do projeto de investigação financiado pela FCT "Utopia, Alimentação e Futuro: O Modo de Pensar Utópico e a Construção das Sociedades Inclusivas - Um Contributo das Humanidades"; é ainda diretora da coleção “Nova Biblioteca das Utopias”, publicada pela editora Afrontamento, bem como de dois periódicos eletrónicos: E-topia - revista eletrónica de Estudos sobre a Utopia e Spaces of Utopia (publicados pela Biblioteca Digital da FLUP); é Book Review Editor do periódico norte-americano Utopian Studies e faz parte do Conselho Editorial de várias revistas internacionais; é coordenadora do Programa de Pós-Doutoramento e Internacionalização ARUS – Advanced Research in Utopian Studies, bem como dos Seminários Multidisciplinares ARUS; integra, desde a sua fundação, a equipa de investigadores que se tem vindo a dedicar à tradução e estudo da obra de Shakespeare…
Não obstante a extensão do seu currículo, este bem poderia resumir-se a uma frase curta: “Eu sou utópica” / “I am utopian”!
Tudo começou quando, há trinta anos, Fátima se encontrou com o livro da sua vida, a Utopia, obra escrita há meio milénio por Thomas More.

PARA QUE SERVE A LITERATURA?

Um só livro pode alterar o curso de uma vida, como sucedeu com Fátima Vieira. Porém, como esta  professora doutora, especialista em literatura inglesa lembrou aos nossos alunos de 8.º ano que tiveram o privilégio de a escutar, a literatura, a grande literatura, serve muitos fins:
▪ A literatura põe-nos em contacto com mundos que de outro modo nunca conheceríamos. No seu caso, o primeiro contacto que teve com a China aconteceu quando leu as obras de Pearl S. Buck, Prémio Nobel em 1938, que, nos seus livros, descreveu pormenorizadamente a cultura asiática, para além de ter defendido os direitos das mulheres e das minorias. Pelo contrário, quando trabalhou com o investigador albanês Eris Rusi, muitas vezes era-lhe difícil estabelecer diálogo com o colega, uma vez que desconhecia o seu país de origem, por nunca ter tido a oportunidade de ler livros oriundos daquela nacionalidade. Como Eris lhe explicou, havia uma razão para ela desconhecer a sua cultura: dado que a Albânia estivera durante muitos anos sob um regime ditatorial, a literatura autóctone fora completamente asfixiada; por outro lado, os cinco tradutores oficiais do regime escolhiam os livros estrangeiros que, do ponto de vista da ditadura, poderiam ser lidos pelos albaneses e mutilavam-nos, suprimindo as partes passíveis de “acordar” a população. Por esta razão, quando chegavam (se é que chegavam!) aos leitores, os livros tinham uma dimensão substancialmente menor que os originais.
▪ A literatura oferece-nos lições de vida e demonstra-nos que temos de ser mais solidários. Assim acontecia, por exemplo, com a literatura vitoriana, representada pela obra de Charles Dickens, autor de As Aventuras de Oliver Twist ou David Copperfield, obras que eram lidas ao serão na casa dos privilegiados e lhes apresentavam uma perspetiva diferente sobre a difícil vida do operariado.
▪ Sendo um simulador muito económico da realidade - uma obra apenas pode reportar-se à vida de várias gerações, mas nós, em contrapartida, jamais poderíamos viver numa só vida todas as experiências que um livro apenas é capaz de relatar -, a literatura confronta-nos com dilemas éticos (“O que é que eu faria se…?”), para além de ser uma excelente companhia.
▪ A literatura é um meio de viagem – ao passado, ao presente e ao futuro; a meios sociais distintos do nosso; a países e sociedades desconhecidas, transformando-nos, por isso, em cidadãos do mundo.
▪ A literatura é um instrumento que nos prepara para a vida, porquanto desperta em nós sentimentos de empatia, compreensão, repulsa, indignação, revolta, sublevação… bem como nos predispõe a uma maior compreensão de outras culturas, à tolerância e à aceitação de outros pontos de vista. Ajuda-nos, igualmente, a aceitar os nossos fracassos, porque nos coloca frente ao fracasso dos outros, tal como nos incita a enfrentarmos as consequências das nossas ações, a identificar as questões fundamentais da existência humana e a compreender a nossa própria vida.
▪ A literatura exige que nós – os leitores – usemos a nossa experiência e sensibilidade para completar a narrativa. É por isso que cada leitor interpreta a obra à sua maneira. Vejamos, a título de exemplo, Os Irmãos Karamásov, de Fiódor Dostoiévski. Será que se trata de um livro sobre as relações familiares e como elas se desfazem? Ou será sobre a nossa relação com Deus? Será sobre redenção? Sacrifício? Traição? Sobre as tensões entre pais e filhos? Será sobre a rejeição e a solidão? Obviamente, é sobre todas estas coisas e muito mais!
▪ Como também refere Richard Zimler, quem lê mais é mais participativo, mais empreendedor e um ser humano mais completo. Como afirma, “(…) as histórias escritas por outras pessoas – por pessoas que não conhecemos – podem ter um efeito direto no modo como nos vemos a nós próprios e como interagimos com os outros. Ajudam-nos a tornarmo-nos seres humanos completos por nos permitirem contar a nossa história com justeza e verdade, quer de modo consciente quer abaixo da superfície da nossa consciência”.

THOMAS MORE, UTOPIA, 1516

Em 1516, quando escreveu a Utopia, Thomas More obrigou os seus contemporâneos a pensarem em coisas sobre as quais nunca tinham pensado. Nesta obra, dividida em duas partes e escrita em latim (o inglês não era à data a língua franca em que veio a transformar-se, e o autor pretendia que a sua obra fosse o mais universal possível), Thomas More começa por denunciar, no Livro I, todas as injustiças vivenciadas pelos europeus do século XVI. Como podes imaginar, tratava-se, do ponto de vista de muitos dos governantes da época bem como dos que lhes sucederam, de um livro perigoso, não sendo, pois, de espantar que as sucessivas traduções da Utopia apresentem versões distintas, consentâneas com as ideias de cada um dos governantes que “supervisionaram” a sua tradução. Já no Livro II, Thomas More descreve a ilha da Utopia, o “não lugar”, que lhe é apresentado por Rafael Hitlodeu, o marinheiro português que afirma ter estado numa ilha onde tudo é fantástico.

A UTOPIA: UM “PAÍS DA COCANHA”
OU UMA NOVA FORMA DE PENSAMENTO?

Na verdade, no Livro II da Utopia, Thomas More não pretendia que aspirássemos a viver no “País da Cocanha”, onde gansos assados no espeto e cotovias gráceis, bem guisadinhas e cobertas com montes de canela em pó voam diretamente para a boca dos homens, sem necessidade de suar para pagar a conta. A Utopia é outra coisa!
Antes de mais, a utopia radica no pressuposto de que o ser humano é capaz de mudar e tem mesmo a responsabilidade de o fazer. A utopia, como afirma Eduardo Galeano, é algo que colocamos no nosso horizonte e nos dá forças para caminharmos e avançarmos cada vez mais. A utopia não é o caminho, mas os diferentes possíveis caminhos. A utopia radica em perguntas inaugurais: “E se…?” e “Onde quero chegar?”, ou melhor, “Onde queremos chegar?”
Com a Utopia, Thomas More criou uma visão particular do mundo e uma nova forma de pensamento: pensamento inclusivo, pensamento crítico, pensamento holístico e pensamento criativo. No fundo, trata-se de libertarmos a imaginação e de sermos cidadãos ambiciosos nos nossos objetivos e, consequentemente, termos a possibilidade de chegar mais longe; trata-se de termos a capacidade de descentramento e de trabalhar em cooperação, com ética e solidariedade; trata-se de sermos questionadores, indagantes, responsáveis e conscientes das nossas ações; trata-se, ainda de produzirmos conhecimento novo de que toda a sociedade poderá usufruir - na Utopia, não se idealiza nem a Natureza nem o ser humano, mas a organização social, preocupando-se o utopista em resolver os problemas sociais (criminalidade, pobreza, vício…) através de um conjunto de estratégias coerentes. No fundo, como refere Gonçalo M. Tavares em Breves Notas sobre Ciência, trata-se de “Observar a realidade pelo canto do olho, isto é: pensar ligeiramente ao lado”.
Não se pense ainda que na Utopia se pressupõe a mudança radical e instantânea da sociedade. Pelo contrário, a utopia imagina o novo “a partir de novas combinações e escalas daquilo que existe, a maioria das vezes pequenos detalhes obscuros daquilo que existe”, como esclarece Boaventura de Sousa Santos em A estratégia utópica (p. 480)

“THE WORLD GOES TO WHERE WE TAKE IT”
“O MUNDO VAI PARA ONDE NÓS O LEVARMOS”

Fátima Vieira deixou que a filosofia de um livro norteasse toda a sua ação ao longo dos últimos 30 anos e, por isso, envolveu-se em múltiplos projetos com jovens portugueses e estrangeiros (ver em Utopia500.net). Neste momento, está ligada a projetos muito interessantes, nos quais também tu podes participar. Destacamos alguns:
- “Utopian Challenge”, que consiste em te filmares a dizer “Eu sou utópica” / “Eu sou utópico”, visando a produção de um mega vídeo mundial, que mostre que nós, os utópicos somos muitos;
- “PanUtopia”, projeto que visa o combate ao desperdício alimentar;
- “Os sons da Utopia”, cujo lema é “vale a pena tocar em músicas e trazê-las para o presente” e que tem por objetivo  fazer o update das  músicas do Renascimento;
- “Great Utopians” /”Grandes Mentes Humanas”, através do qual se pretende construir um mapa alternativo da cidade, valorizando o património humano.


DESAFIO: COMEÇA A ESCREVER O LIVRO III DA UTOPIA

Um desafio demasiado ambicioso? O.K. talvez seja mesmo demasiado ambicioso. Para já!
No entanto, há dois desafios um bocadinho menos ambiciosos que Fátima Vieira nos deixou :
LIBERTA A TUA IMAGINAÇÃO. Como dizia Albert Einstein, “A imaginação é mais importante do que o conhecimento. Pois o conhecimento é limitado, ao passo que a imaginação abarca o mundo inteiro, estimulando o progresso, gerando evolução. É, na verdade, um fator importante a ter em conta na investigação científica”.
▪ E que tal começar a LER E a COLOCAR QUESTÕES? As perguntas que fazemos sobre as outras sociedades levam-nos a colocar questões sobre a nossa sociedade. E a querer mudá-la!

Lembra-te: até as plantas hermafroditas [com a possível exceção da ervilheira] necessitam de material genético novo para se reproduzirem. Que tu sejas o material genético novo. Que a mudança comece em ti!

4 comentários:

  1. Sou uma grande admiradora da Fátima Vieira ! Fico muito feliz que tenham tido o privilégio de a conhecer e de a ouvirem! Todos sairam certamente mais ricos, professores e alunos!

    ResponderEliminar
  2. Foi, realmente, um privilégio conhecer Fátima Vieira! As suas palavras deixaram-nos cheios de luz!

    ResponderEliminar
  3. Fátima Vieira Confesso que até fiquei corada com este artigo! As professoras da escola EB 2,3 são umas queridas e exageram naturalmente em relação à minha apresentação, mas é muito bom saber que consegui fazer passar a mensagem. Uma ideia notável, a de nos convidarem para falarmos dos livros da nossa vida. É que há mesmo livros que mudam a forma como pensamos o mundo. E se conseguirmos passar a mensagem aos jovens, já estamos a meio caminho de o mudarmos de facto!
    Fátima Vieira, Facebook

    ResponderEliminar
  4. De facto, não exageramos absolutamente nada: o encontro com Fátima Vieira foi verdadeiramente inspirador e marcante! Mais uma vez, muito obrigada por ter vindo à nossa escola iluminar-nos!

    ResponderEliminar

Obrigada pelo seu comentário!