sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MANUEL ANTÓNIO PINA PARTIU


     
     Manuel António Pina - poeta, dramaturgo, cronista – galardoado com o Prémio Camões 2011, o maior prémio literário de língua portuguesa, um entre muitos outros prémios que recebeu – deixou-nos hoje. No entanto, um escritor corajoso, interessado pelo mundo e pelos homens, não parte. Permanece, na sua obra e na nossa memória. 
     Em sua homenagem, deixamos-te aqui um poema e parte de uma crónica, onde o autor nos fala, como sempre, de “coisas sólidas e verdadeiras”.

NA BIBLIOTECA
       
               O que não pode ser dito
               guarda um silêncio
               feito de primeiras palavras
               diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,

               quando já a incerteza
               e o medo se consomem
               em metros alexandrinos.
               Na biblioteca, em cada livro,

               em cada página sobre si
               recolhida, às horas mortas em que
               a casa se recolheu também
               virada para o lado de dentro,

               as palavras dormem talvez,
               sílaba a sílaba,
               o sono cego que dormiram as coisas
               antes da chegada dos deuses.

               Aí, onde não alcançam nem o poeta
               nem a leitura,
               o poema está só.
               ‘E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.’

 COISAS SÓLIDAS E VERDADEIRAS

     O leitor que, à semelhança do de O'Neill, me pede a crónica que já traz engatilhada perdoar-me-á que, por uma vez, me deite no divã: estou farto de política! Eu sei que tudo é política, que, como diz Szymborska, "mesmo caminhando contra o vento/ dás passos políticos/ sobre solo político". Mas estou farto […].
     Por isso, decidi hoje falar de algo realmente importante: nasceram três melros na trepadeira do muro do meu quintal. Já suspeitávamos que alguma coisa estivesse para acontecer pois os gatos ficavam horas na marquise olhando lá para fora, atentos à inusitada actividade junto do muro e fugindo em correria para o interior da casa sempre que o melro macho, sentindo as crias ameaçadas, descia sobre eles em voo picado. 
     Agora os nossos novos vizinhos já voam. Fico a vê-los ir e vir, procurando laboriosamente comida, os olhos negros e brilhantes pesquisando o vasto mundo do quintal ou, se calha de sentirem que os observamos, fitando-nos com curiosidade, a cabeça ligeiramente de lado, como se se perguntassem: "E estes, quem serão?" 
     Em breve nos abandonarão e procurarão outro território para a sua jovem e vibrante existência. E eu tenho uma certeza: não, nem tudo é política; a política é só uma ínfima parte, a menos sólida e menos veemente, daquilo a que chamamos impropriamente vida. 

Crónica publicada no dia 1 de Agosto de 2012 no JN
(Texto com supressões)

E para conheceres  um pouco sobre o autor e sobre a sua obra Como se desenha uma casa:




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